terça-feira, 23 de novembro de 2010

Entrevista: Amyr Klink (parte 2/3)


Vicente Morisson:
Sabemos que você é um grande colecionador de canoas antigas. Como surgiu esse interesse e por quê?
Amyr Klink: Eu percebi que o Brasil tinha uma riqueza muito grande em relação as técnicas de fazer barcos. Isso é um assunto que está intimamente ligado a nossa genuína cultura. Foi dai que surgiu a idéia de fazer o Museu Nacional em Santa Catarina. Aliás, é onde está o barquinho a remo, o Paraty. A idéia do museu era, justamente, resgatar essa riqueza de feitios, técnicas de estilos e um pouco desse patrimônio perdido.


O museu aconteceu, é bem sucedido e o método de gestão é um pouco diferente do convencional. Agora, estou travando uma batalha com o museu, pois quero tirar o meu barco de lá. Antes, o barco chamava público e por isso eu deixei lá. Mas, hoje, o museu já tem identidade própria e não precisa mais dele.



VM: Você leva algum tipo de experiência do mar para o seu dia-a-dia? Qual (is)?
AK: Normalmente, eu sou listado a fazer isso. Trazer experiências e aprendizados do mar para o dia-a-dia pelos próprios convites para fazer palestras em colégios e empresas da área financeira. Eu acho um pouco de oportunismo você fazer analogia, mas o fato real é que essa experiência no mar ensina muito para a gente em todos os sentidos. Enfim, tem um monte de qualidades e virtudes que são importantes no mar para você sobreviver. Uma certa dose de abstinência, uma capacidade de sacrifício, abrir mão em prol de um objetivo.


Um fato, que você é obrigado a ter uma sensibilidade maior, por exemplo, entender de assuntos diferentes, olhar a visão do outro, ter um certo desapego por valores materiais, uma coisa que meus pais tinham e eu não entendia. Hoje eu sei. Tem um amigo nosso que tinha um barco maravilhoso, foi o sonho da vida dele e afundou. Estava com cinqüenta e poucos anos de idade, teve que começar tudo de novo do zero e está feliz como nunca. Hoje, a gente tem alguns objetivos de vida que nesse mundo da hiper exposição dual onde se preza demais a aparência, como a marca do carro, o bairro aonde mora, o tamanho da casa, o status econômico. No mar não tem essas coisas. Na Antártica muito menos.


VM: Quem são as suas grandes referências no mar e fora dele?
AK: No mar eu tive várias influências. Primeiro foi um mestre canoeiro que pessoalmente nunca cheguei a conhecer. Sempre o admirei. Ele era o Mané Santos de Paraty. De repente, eu descobri que ele era uma lenda viva e só meia dúzia de velhos canoeiros o conheciam. Fui aprendendo tudo sobre esse cara. Ele foi uma referência.


Uma outra referência que eu conheci foi o casal Poncet que me conheceram em Paraty quando eu tinha dezessete, dezoito anos. Eu tinha muitas vacas por lá, trabalhava com produção de leite e queijos. Naquela época eu não sabia a diferença de um barco e uma banheira. Vinte anos depois a gente se encontra na Antártica e eu estava com um barco super moderno, ousado, terminando uma viagem e eles me perguntam Você não é aquele cara das vacas? E esse casal foi o primeiro a ter um barco que invernou na Antártica. Eles acabaram tendo três filhos a bordo. Hoje, estão separados, mas vivem sempre juntos e são lendas imortais da história do descobrimento da Antártica.


Teve também um francês, o Erick Tabarly. Ele era da marinha e de tal modo apaixonado pela vela, que tornou-se uma das figuras mais importantes não só na história, mas na cultura náutica francesa. Por pura causalidade tive o privilégio de velejar uma vez com ele.


Fora do mundo náutico tem tantas pessoas... literária, por exemplo, eu gosto do Walter Campos de Carvalho. É um negócio engraçado, pois a maioria dos grandes autores brasileiros eu não gosto de ler. Primeiro, eu acho que se escreve muito mal no Brasil e isso é uma coisa que eu aprendi com os meus pais que não eram brasileiros de nascimento, mas eram muito mais brasileiros do que quem nasce aqui, que abraçaram o Brasil de coração. Eu gosto muito do estilo do Campos de Carvalho.


Algumas outras referências que eu acabei conhecendo, como o comandante Rolim que não caberia hoje num mundo politicamente correto. No Brasil tem pessoas extraordinárias. Um dos maiores gênios que a gente já teve é o músico Elomar Figueira Mello. Além dele, tem o Antonio Nóbrega, um multi-artista do Quinteto Armorial.


VM: Qual é a sua preferência alimentar? Você faz algum tipo de acompanhamento nutricional?
AK: Eu faço, por que essa história de ficar 3 a 4 meses no mar por ano tem algumas seqüelas. Por exemplo, a gente perde muito peso, às vezes de 15 a 20 kg e você recupera muito peso depois que volta. Então, sempre tem essa oscilação calórica que é terrível. Você aumenta brutalmente o consumo de calorias quando sai para uma viagem. Aí quando você volta, embora você perca peso, subitamente você começa a ganhar tudo de novo. Eu gosto de fazer acompanhamento nutricional de vez em quando. A minha mulher, a Marina, é vegetariana mas eu não sou. Mas gostaria de ser.


VM: O que impede você adotar uma vegetação vegetariana?
AK: Acho que são algumas questões culturais, o lado libanês da família, mas eu gostaria de acompanhar a Marina nesse aspecto. Eu acho interessante.


VM: E as suas filhas são vegetarianas?
AK: No momento não, mas a gente discute muito isso em casa. Elas tem grande inclinação para serem vegetarianas. O lado prático que me anima nisso no caso das viagens é a parte logística que é muito mais fácil. A gente usa muito da culinária oriental, principalmente, produtos desidratados, cereais e grãos. Na dieta a bordo ajuda bastante.



VM: De uma maneira geral, já que você viaja bastante devido a sua profissão, como você vê a relação do homem e o mar hoje em dia?
AK: Talvez, eu falaria um pouco a relação homem e natureza onde a gente fala muito, mas a gente pratica pouco. A gente se isola, se afasta. No caso do mar, especificamente, eu acho que existe uma grande distância, hoje, entre intenção e a realidade. Todo mundo quer se proteger mas a gente quer adotar posições cômodas, criar uma lei que protege e plastifica mas que não funciona, porque para cada lugar, para cada atividade você tem que adotar, às vezes, atitudes específicas e isso é difícil na prática.


Num país como o Brasil, eu acho que a gente tem um profundo “medo” do mar, uma considerável dose de desprezo. Culturalmente, a gente se livra de tudo aquilo que a gente não quer. Isso acontece sistematicamente. Por exemplo, um grande amigo arquiteto em Paraty, um super ecologista de carteirinha fez um baita condomínio popular e despejou o esgoto in natura sem nenhum tipo de tratamento, algo de morrer de vergonha. A gente tem esse hábito. Paraty é uma cidade aonde eu aprendi muito sobre isso. É uma cidade planejada e que na época era pioneira em matéria de limpeza e saneamento. Hoje, o pessoal fura qualquer galeria de água pluvial para jogar o esgoto. Qualquer passagenzinha de água está contaminada de esgoto clandestino. É uma questão cultural. É fácil acusar os prefeitos que não fizeram muita coisa. O fato é que é cultural. Tem gente que coloca o lixo na porta de casa. Parece discriminação mas em alguns lugares isso não acontece e outros não sei porque acontece mais.


No caso, do estado do Rio de Janeiro isso é uma coisa horrenda. Todo mundo faz isso, tira o lixo de dentro e põe do lado de fora. Se o terreno é baldio, então, vira um lixão. Tem o lado do urbanismo onde é muito mais inteligente, consome muito menos energia, utilizar canais navegáveis. O Brasil tinha malha de canais naturais navegáveis absolutamente incrível e foi simplesmente castrada por estradas. Houve um período da nossa história onde era tamanho o desprezo em relação ao mar que a gente resolveu simplesmente cortar qualquer chance de interação. Você vê o absurdo que é a Baixada Santista. Tudo era interligado de forma eficiente, barata, confortável, rentável até por canais naturais e de repente fizeram essa excrescência da Anchieta e depois a excrescência maior ainda da Imigrantes com pontes tangenciando a água. Existe um paternalismo em relação aos manguezais também que é incrível. Favela pode e empreendimento não pode? Se pode favela porque não pode outras coisas? O que não pode não pode. Tira o pessoal da favela.


Aconteceu uma coisa curiosidade na nossa história no Recôncavo baiano que tinha toda uma malha de serviços executados por veleiros incríveis pelo mar, aí fizeram centros de distribuição longe do mar. Você tem os rios Capibaribe, Beberibe em Pernambuco onde as pontes eram baixas e aniquilaram as possibilidades de uso dos rios como meio de transporte. Isso também aconteceu na Baia de Guanabara, na Baixada Santista e outros lugares também.


Você tem por Porto Alegre que foi amputada do porto e tem porto no nome, mas não tem nada de porto. Tem inúmeros exemplos no Brasil, como Estação das Docas em Belém. Você tem um monte de coisas. As hidrovias que por lei, na execução das barragens para geração hidroelétrica, determina a previsão de recursos, capacidade de embarcações e até para migração dos peixes que não estão sendo feitas. Estão sendo licitadas, agora, em Tocantins, por exemplo, duas ou três eclusas, mas simplesmente não se está obrigando os proponentes a executar as eclusas. Quer dizer, você aniquila a necessidade de uso do rio. Então, tem esse lado curioso nosso que a gente não gosta de nada que é bom.


VM: Qual o lugar mais especial que você já navegou?
AK: Nossa, é tão difícil de falar! Tem a Baia de Paraty, Mamanguá e Meros. Essas três baias são muito especiais. Eu gosto muito do pedaço da península Antártica, que chama Plenau, um lugar que tem uma armadilha natural que prende grandes icebergs e aí eles vão ficando colados uns nos outros e assumindo formas absolutamente mágicas. Vc fica no meio do gelo sem enxergar a água e de tão claro parece que vc está voando. É um lugar especial.


Foi pra mim também especial navegar na Ilhas Feroe, um arquipélago escandinavo, que pertence Dinamarca. É um lugar que eu adorei conhecer porque eu conheço bem a Escandinávia, minha mãe era escandinava e eu sei o quanto eles são aparentemente frios e os habitantes da Ilhas Feroe tem muito desse calor brasileiro, que é incomum você encontrar. Só que eles conseguiram uma prosperidade extraordinária graças ao sistema de ensino que não é muito convencional. Eles não ensinam matemática, física, química. Eles trabalham em cima das tradições deles que eles respeitam bastante e você vai para uma escola e aprende, por exemplo, a construir um barco viking ou uma casa. E na construção você aprende matemática, física, química, astronomia, história de uma maneira muito sofisticada e que produz resultados incríveis.

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